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Beta Boechat: Você se incomoda quando te tratam com respeito?
Desde que a figura da Lina Pereira, a Linn da Quebrada, saiu dos meios mais alternativos e ganhou a televisão, o Big Brother Brasil e por aí vai, me deparei com várias experiências incômodas que nem sempre eu estava tão preparada – ou até afim – de passar.
Ver a vivência de uma travesti em meio a tantas pessoas que, até aquele momento, pouco ou nenhum contato tiveram com pessoas como nós, criava situações de um desconforto gigante.
Mas o que aconteceu nesse domingo, no Dança dos Famosos, quadro do Domingão do Huck que a Lina está participando, foi bem diferente.
Lina narrou que entrou em um parafuso mental quanto percebeu que seu instrutor/professor, o Hugo, não rejeitava seu corpo travesti. Isso gerou desconforto, vergonha e até uma certa atitude de proteção com a outra pessoa, como se você tivesse que proteger a outra pessoa de se relacionar com você em retribuição ao carinho – sentimento que conheço bem.
Essa sensação me fez lembrar o quanto eu detesto receber carinho.
O início da minha relação com o Caio não foi nada fácil. Pra uma pessoa que passou 27 anos da sua vida sozinha, sem se relacionar com praticamente ninguém, sem ter seu corpo tocado, acariciado, amado, de forma nenhuma neste tempo, receber afeto e atenção era um desafio.
Toda vez que o Caio queria chegar perto de mim, me tocar, eu rejeitava ou ficava extremamente desconfortável. Morria de vergonha de demonstrações de carinho. Queria racionalizar todos os sentimentos que ele tinha por mim e eu por ele. Isso criou um atrito que demorou muito tempo pra se curar, e que ainda hoje, ainda persiste, mesmo que bem mais sutil.
Quando nos falta o amor próprio, nos acostumamos a nos odiar das formas mais cruéis e objetivas.
Se rejeitamos nosso corpo, nossa aparência, acreditamos que nada do que existe em nós merece ser tratado com respeito e acolhimento, fazemos de tudo pra que outras pessoas também não tenham esse poder sob nossos corpos.
Mesmo que parte desse sentimento já tivesse sido curado dentro de mim, minha transição trouxe a tona muita coisa de volta. Eu, como uma travesti, uma mulher trans, que tem pouca passabilidade – quer dizer, que muita gente olha pra mim e sabe que sou uma pessoa trans – a rejeição constante a quem eu sou saiu um pouco da minha cabeça, e se materializou do lado de fora.
Se antes eu me rejeitava no espelho enquanto as rejeições externas eram um pouco mais sutis, depois da transição, a rejeição passou a ser explícita. Pessoas olhando torto, confusas, fazendo questão de tratarem você da forma como você não gostaria. Passamos a ter medo de se aproximar das pessoas, de demonstrar carinho.
Quer ver um dos momentos mais constrangedores pra mim até hoje? Conhecer homens heteros no trabalho.
É comum que homens, ao conhecer mulheres, troquem beijos no rosto.
Muitas vezes, eu não sei o que fazer nesses momentos.
Com medo de constranger o outro, de criar uma cena, de gerar um problema, eu muitas vezes já estendo minha mão para não dar dúvidas de como aquela relação vai se dar. Não dou nem a chance de que aquela pessoa possa talvez se sentir mal em não querer me beijar.
Esse é um pequeno exemplo desse desconforto constante. Um desconforto físico.
Lina falar que ela ficou confusa ao poder tocar, estar corpo a corpo com seu professor, com zero questão sexual envolvida, mas apenas como todas as outras mulheres ficam com seus professores no programa, é precisamente uma versão do dilema dos dois beijinhos.
A violência nos faz subir muralhas e negar nosso corpo de formas que nem a gente percebe.
Esse discurso me tocou e me fez lembrar dessa memória emotiva que fica guardada no nosso corpo.
O quanto eu ainda não descobri algumas liberdades musculares, alguns rebolados e aberturas, pelo medo de ser eu. E o quanto estar em um ambiente que me acolhe, que me liberta para isso, ainda é um ambiente que deveria gerar liberdade, mas gera desconforto.
E você? O acolhimento também te incomoda?
Este texto é parte da newsletter CARTA BETA da Beta Boechat.
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