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Bem-estar e autoestima

Larissa de Almeida: a transição capilar é uma jornada de autoconhecimento e empoderamento

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Larissa de Almeida: a transição capilar é uma jornada de autoconhecimento e empoderamento

Já ouviu falar na transição capilar? Durante muito tempo, o alisamento térmico foi febre no Brasil. Escova definitiva, japonesa, progressiva e tantos outros nomes relacionados ao processo de, quimicamente, tirar as ondulações das madeixas com diferentes substâncias, em sua maioria, tóxicas ao nosso organismo – quem nunca sentiu o olho ou o couro cabeludo arder ao fazer esses procedimentos que atire a primeira pedra.

Para falar sobre esse assunto, convidei duas mulheres que já passaram por tal experiência e ainda viveram a tão falada transição capilar. A primeira, a psicóloga Nirvanda Ribeiro. Além dela, a antropóloga especializada em Diversidade Étnica e Antirracismo, Izabel Accioly

Os desafios enfrentados por indivíduos negros em relação à aceitação do cabelo natural

Durante a pandemia, sem salões de beleza e com a raiz crescendo em sua textura natural, muitas mulheres deixaram de lado a química. Em janeiro de 2020, Nirvanda Ribeiro realizou o último procedimento de alisamento e conta que jurou para si mesma: vou tentar manter o cabelo natural, se eu não gostar, aliso novamente!

Muitas mulheres não conseguem completar a transição e está tudo bem. Não é um processo fácil, afinal, são muitas questões que estão relacionadas a esse processo. Nesse ponto em especial, a antropóloga Izabel Accioly comenta sobre os desafios enfrentados por indivíduos negros em relação à aceitação do cabelo natural em espaços sociais como escola, mídia e ambiente de trabalho.

“É muito comum que nós, pessoas negras, tenhamos os nossos traços fenotípicos desmerecidos. Por exemplo, os lábios grossos, nariz largo e a questão do cabelo parece ser uma questão central aqui no nosso país. É possível ainda que essa primeira violência aconteça na família e na escola, onde há também um racismo recreativo ao dizer que o cabelo é duro, com perspectivas bem pejorativas sobre o que é ter um cabelo crespo”, explica.

Izabel Accioly comenta sobre os desafios enfrentados por indivíduos negros em relação à aceitação do cabelo natural / Foto: Divulgação

Izabel compartilha a realidade enfrentada por muitas pessoas negras, especialmente mulheres, que são desvalorizadas e enfrentam estereótipos relacionados à aparência do cabelo. Ela ressalta que, historicamente, a mídia e a sociedade promoveram uma visão restrita e excludente de beleza, negligenciando a diversidade étnica.

No entanto, ela destaca que essa perspectiva está mudando gradualmente, com o surgimento de mais representatividade e valorização dos cabelos naturais. Isso reforça a importância de desafiar esses estereótipos e construir uma autoestima baseada em critérios próprios e autênticos. 

Nirvanda finalizou transição capilar se inspirando em outras mulheres

E foi exatamente se inspirando em outras mulheres que Nirvanda encontrou forças para finalizar a sua transição. “Durante o processo, fui buscando referências, mulheres que já tinham passado pela transição e isso me fortaleceu. Com isso, percebi que a transição não era somente sobre cabelo, mas sobre identidade!”, reflete.

“Depois de perceber isso, o processo de transição não se tornou mais fácil, pelo contrário, mas ficou suportável porque ganhou outro sentindo”, acrescenta. De fato, a questão racial tem uma forte relação com nossa ancestralidade, mas ainda não é tão simples encontrar tais referenciais de beleza.

Nirvanda Ribeiro finalizou transição capilar se inspirando em outras mulheres / Foto: Divulgação

Sem dúvidas, é mais fácil encontrar na mídia, nas redes sociais e mesmo em revistas de moda, mulheres ostentando seus cabelos naturalmente afros e cacheados, porém sabemos que nem sempre foi assim. Muitas delas ainda não se sentem confiantes e bonitas na sua versão de cabelos naturais. Afinal, esse é o ideal de beleza que aprendemos no passado.

“O que a gente aprende a achar bonito, desejável é na verdade uma construção social”

Izabel conta que “o que a gente aprende a achar bonito, desejável é na verdade uma construção social”. Para ela, a gente acha que o gosto é pessoal e que nada influencia nisso, mas na verdade não é bem assim. A mídia, a televisão, a moda, celebridades, capas de revista, o mundo digital, tudo isso vai influenciar no modo como se constrói as identidades negras e no modo como se identificam ou não com a beleza e com a valorização da própria cultura e dos fenótipos também. “Era muito comum nos anos 90 e 2000 que a gente observasse comerciais de TV capas de revista sem a presença de pessoas negras”, relembra. 

Ela também destaca que só mais recentemente a mídia passou a ter referencial de beleza com cabelos crespos e volumosos, já que antigamente era visto como algo desarrumado mas que tem sido transformado. 

“Infelizmente, a questão de observar o cabelo crespo como pouco profissional ainda é muito comum quando a gente pensa no ambiente de trabalho e isso foi comprovado em pesquisa”, diz Izabel, se referindo ao “Estudo de Pesquisa no Local de Trabalho – Crown 2023”, realizado pela Dove em parceria com o LinkedIn, que ouviu 2.990 mulheres com idades entre 25 e 64 anos.

Os dados coletados entre dezembro de 2022 e janeiro de 2023 mostram que 20% das mulheres entre 25 e 34 anos já foram demitidas em razão do cabelo. Sobre o resultado da pesquisa, a antropóloga ainda cita que “isso coloca as mulheres negras como pessoas que não têm capacidade para desempenhar suas funções baseadas no aspecto do cabelo. O que não tem fundamento algum, não é o nosso cabelo que vai ditar ou não a nossa competência”.

Teoria feminista negra fez Izabel começar a transição capilar

Além disso, Izabel também nos conta o que passou no mercado de trabalho por conta de seus cabelos cacheados. “Quando eu comecei a trabalhar, ainda adolescente, tinha um critério chamado ‘boa aparência'”, lembra.

“’Boa aparência’”’, para quem não entende, é um eufemismo para ‘contratarmos só pessoas brancas’. E, quando eu fui contratada pela primeira vez, o que me disseram foi que eu tinha que alisar o meu cabelo pois era pouco profissional, então meu primeiro emprego foi tendo que alisar o cabelo e assim fiz durante 12 anos. Eu só parei de alisar quando retomei minhas leituras sobre feminismo negro. Foi a teoria feminista negra que me empoderou para me aceitar e também o fato de conviver com outras mulheres negras“, conta.

Após transição capilar, Nirvanda passou pela ‘ditadura’ do cacho perfeito

O mercado de cosméticos acompanhou essa mudança e hoje existem inúmeros cremes finalizadores, gelatinas, óleos e linhas voltadas exclusivamente para cada curvatura dos cachos. Às vezes, ter tantas opções pode causar uma confusão no que usar, no que escolher, no que deve ser adequado ou mesmo encaixar em um novo padrão, o do “cacho perfeito”, sem frizz, impecável. 

A psicóloga Nirvanda passou por isso. “Tento me libertar da ‘ditadura’ do cacho perfeito! Estou aprendendo a lidar com o volume. Hoje, entendo que a transição não tem fim no big shop, pelo contrário, a partir dali, começa uma nova fase da transição”, analisa .

O mercado de cosméticos não enxergavam as pessoas negras como um grupo consumidor importante de ser atendido e isso vem mudando nos últimos tempos. Na realidade esta questão é irônica visto que pessoas negras são a maioria da população Brasileira, negros são 56% da população.

Como a transição capilar transformou a autoestima das mulheres

Por fim, hoje em dia Nirvanda pode afirmar que se espelha muito mais em suas amigas, na estética delas e no modo como elas arrumam o cabelo do que em estrelas da TV ou qualquer representação da mídia.  “Hoje eu entendo que o meu referencial de negritude deve ser deve vir do meu próprio grupo e não de uma mídia hegemônica que é geralmente branca. A transição no final das contas é transformador. Dói, mas transforma!”, diz.

As palavras de Nirvanda e Izabel destacam como a transição capilar não se limita apenas aos cabelos, mas também envolve uma jornada de autoconhecimento e empoderamento, algo muito frequente na nossa jornada feminina.

Ao buscar referências e confrontar os padrões impostos pela sociedade, elas encontraram uma conexão mais profunda com sua identidade e sentiram um fortalecimento pessoal. Isso nos mostra que a aceitação dos cabelos naturais não apenas contribui para a construção da autoestima, mas também abre caminho para uma transformação interna positiva. E que transformação linda!

Larissa de Almeida professora, escritora e criadora do perfil informativo @explantedesilicone no Instagram
Larissa de Almeida

Sou professora, escritora e criadora do perfil informativo @explantedesilicone no Instagram. Sou movida pela curiosidade e fascinada em ouvir e escrever histórias.

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